terça-feira, 19 março, 2024 01:20

MATÉRIA

Os produtos básicos que se tornaram mercadorias de luxo com a crise na Venezuela

Em uma banca nas abarrotadas ruas de comerciantes de Petare, a maior favela da Venezuela, em Caracas, Jefferson Manzano compra 100 gramas de café moído. Cuidadosamente embalado e selado, o pacote de café é tão grande quanto um saquinho de chicletes.

Manzano também compra 50 gramas de leite em pó e 20 de açúcar. Os três saquinhos cabem no seu bolso. “É para o café de domingo”, diz ele, como quem guarda o que tem de melhor para o almoço daquele dia especial da semana. À medida em que a escassez se agravou na Venezuela, o que era rotina agora virou um luxo.

A Pesquisa de Condições de Vida, realizada por três universidades venezuelanas, revelou em 2015 que 87% das pessoas não tinham renda suficiente para comprar o básico. E este ano a escassez é agravada por uma inflação desenfreada e a recessão histórica se aprofundou.

Por isso, os momentos em que mesmo a população mais pobre comia carne, queijo e chocolates – quando a Venezuela liderou as taxas de consumo na região – se tornaram apenas lembranças.

No mercado

Poucas pessoas na Venezuela lembram dos tempos de abundância tão bem quanto os vendedores do mercado popular de Quinta Crespo, no centro de Caracas.

A maior parte dos comércios de lá é gerida há décadas pela mesma pessoa ou família. Muitas delas são formadas por imigrantes espanhóis e portugueses que encontraram refúgio por ali e, acima de tudo, oportunidades.

Astrid *, uma portuguesa, diz que nos 50 anos que vive vendendo vegetais na Quinta Crespo “nunca tinha visto pessoas sem fazer compras por quilo”.

“Antes, as pessoas compravam de 2kg a 3kg por produto, mas agora só querem uma cebola aqui, dois tomates ali, três cenouras e só”, diz ela.

A história se repete nas bananas, que agora são compradas por unidade; e nas frutas secas, que não são vendidas mais misturadas; e os ovos, que são vendidos por unidade com preço destacado em uma placa.

Açougueiros descrevem um fato ainda mais revelador da crise: eles já não estão vendendo frangos inteiros.

Por duas razões: as pessoas consideram mais vantajoso comprar partes separadas porque o preço do frango inteiro é definido pelo Estado – um dos controles que, segundo economistas, gera escassez.

Vendê-lo em partes, portanto, permite pular regulamentos que afetam a rentabilidade.

Mas há uma outra nova prática nesses comércios: as pernas e a carcaça de frango, que antes eram jogadas fora, para a alegria de cães e gatos, agora são mais vendidas que a coxa e o peito.

“Como está muito caro comprar frango, pelo menos com os pés eu posso fazer uma sopa, que serve como substituto”, diz Johana Romel, cliente assídua da Quinta Crespo.

Com o peixe é a mesma coisa: garoupa, anchova e salmão vendem muito pouco ou nada e agora foram substituídos por sardinha e corvina, considerados de qualidade inferior.

Até o senhor que vende garrafas de vidro usadas diz que tem sido um sacrifício encontrá-las “porque as pessoas já não têm dinheiro para fazer o molho de pimentão doce ou gemada de creme”, produtos que anteriormente eram essenciais na mesa do venezuelano.

Nas casas

O autorracionamento não ocorre apenas na compra, mas também no consumo.

Eu nunca vou me esquecer do dia, em fevereiro, quando uma jovem dona de casa de um subúrbio do sul da cidade de Valência chorou na minha frente quando uma de suas madrinhas nos deu café, porque era uma ocasião especial: o dia em que um jornalista a visitou.

“Entenda-me, é que nós passamos sufoco para obter leite e quando bebemos depois de meses é como se fosse um milagre”, disse ela, enquanto os outros concordaram com a cabeça. De acordo com outra pesquisa de 2015, 12% dos venezuelanos estão comendo duas ou menos vezes por dia.

Nas casas, vi que a panela de feijão preto tradicional, que anteriormente acabava na hora do almoço, agora dura até o jantar e café da manhã no dia seguinte.

Sabão para lavar os pratos rende porque é mergulhado na água e o xampu deixou de ser usado todos os dias.

As atividades que antes eram consideradas básicas para qualquer um, como ir viajar nas férias ou ir às compras no shopping, estão agora ao alcance de poucos. Hoje, muitos dos restaurantes são apenas para os ricos.

Mercado negro

Em um comércio de esquina café está à venda a preço tabelado. Dezenas de homens e mulheres se aglomeram e sussurram os preços da versão “tradicional” e “industrial” do produto. Para ter acesso a esse tipo de produto, milhões de pessoas pegam em média 35 horas por mês de filas, segundo a empresa Datanalisis.

Eles são os famosos “sacoleiros” que revendem mercadorias com preço de 15 a 20 vezes maior que o regulamentado. Há algumas semanas, cerca de 200 mil pessoas cruzaram a fronteira da Venezuela para a Colômbia para comprar o equivalente a um ou dois salários mínimos semanais desses produtos que não são encontrados do lado de cá. Chegou ao ponto de que tudo o que é comprado na Colômbia pode ser encontrado com os sacoleiros.

É por isso que Aristides *, o dono da barraca de café em porções, conta como ainda mantém o seu negócio, “as pessoas já não encontram para comprar dos sacoleiros e o regulamentado não é mais encontrado.”

“Então, o que eu faço é comprar dos sacoleiros, dividir em pequenas porções e, em seguida, vendo.”

Isso é a revenda da revenda. Uma solução temporária, um luxo para o domingo, uma crise agravada a cada dia.