sexta-feira, 19 abril, 2024 20:22

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Por que a Colômbia disse ‘não’ ao acordo de paz com as Farc

Como é possível que um país recuse um acordo que colocaria fim a um conflito armado que se arrasta a mais de meio século e já custou as vidas de mais de 200 mil pessoas?

Esse é o sentimento que tiveram muitos observadores do referendo colombiano sobre o acordo de paz com a guerrilha, realizado no domingo.

O acordo requereu quatro anos de difíceis negociações entre o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Rodrigo Lodoño, também conhecido como Timoleón Jimenez ou Timochenko.

Mas esbarrou na opinião pública, depois que a opção por não ratificá-lo foi escolhida por 50,2% dos votos válidos. A diferença entre o “não” e o “sim” foi de menos de 60 mil votos. A campanha pelo “Sim” tinha o apoio de Santos e de uma série de políticos dentro e fora da Colômbia, incluindo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Os partidários do “Não” eram liderados pelo ex-presidente colombiano Álvaro Uribe.

Abstenção nas alturas

Mas o acordo de paz parecia contar com mais entusiasmo internacional do que entre os próprios colombianos. A taxa de abstenção na consulta foi a mais alta em décadas: 63%.

Eleitores ouvidos pela BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, indicaram que as feridas abertas pelo conflito com as Farc continuam latentes. Durante todo o processo de paz falou-se muito de perdão, mas perdoar 50 anos de agressões e violência não é fácil, afirmaram.

A contadora Mercedes Castañeda, que mora em Bogotá, é uma das que acreditam que “não” significou “a vitória da Justiça”.

“A verdade triunfou, porque havia manipulação nos acordos. Nós não queremos que as Farc tenham um espaço político que não merecem”, disse Castañeda.

Para Castañeda, a guerrilha forjou seu caminho “com sequestros, assassinatos e narcotráfico”. ” A Colômbia não se esqueceu”.

Já para a professora universítária e jornalista Ana Cristina Restrepo, a oposição ao acordo é fruto do medo – “o grande eleitor na Colômbia”.

“Não fomos capazes de dar esse passo. Voltamos ao mesmo ponto de 1982, quando se começou a negociar com as Farc”, disse ela.

Pontos de divisão

No plebiscito de domingo, os colombianos tiveram de responder à seguinte pergunta: “Você apoia o acordo final para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura?”

Não era uma simples decisão sobre um cessar-fogo.

O pacto elaborado em Havana se materializou em um documento de 297 páginas contendo vários pontos que dividiram a opinião pública e os políticos colombianos.

Uma das partes mais questionadas do acordo foi a garantia dada ao partido político no qual as Farc se transformariam: eles receberiam cinco cadeiras no Senado e cinco na Câmara nos dois ciclos legislativos seguintes.

Outras objeções foram feitas à proposta de que os culpados de crimes de guerra ou contra a humanidade – tanto das Farc como das forças do Estado – não fossem presos.

Mas o resultado do referendo não significa que os colombianos querem que a guerra continue.

“O não no referendo não é um não à paz, não se pode considerar assim. É preciso fazer uma somatória que permita que o fim do conflito tenha um maior respaldo”, disse à BBC Mundo Victor G. Ricardo, que fez parte das negociações do governo com as Farc durante o governo de Andrés Pastrana (1998-2002).

Surpresa? Nem tanto

O burburinho sobre o “fim da guerra”, criado após o presidente Santos assinar o acordo de paz em Cartagena na semana passada, fez muitos analistas acreditarem que o “sim” venceria facilmente no domingo. As pequisas de opinião pintavam cenário semelhante.

A jornalista Ana Cristina Restrepo disse que não se surpreeende com a vitória do não”.

Segundo ela, um dos maiores críticos do acordo firmado por Santos, o ex-presidente Álvaro Uribe, soube exercer sua influência em determinadas regiões do país, como o departamento (estado) de Antioquia.

Além disso, enquanto o conflito se desenrola principalmente nas zonas rurais, a maioria dos eleitores está nas cidades. Apesar de grande parte dos colombianos afirmar querer a paz, eles ainda não estão de acordo sobre como conseguí-la.

Antes da votação, o presidente Santos havia dito que não havia “plano B” para o fim do conflito. Porém, disse que o cessar-fogo com as Farc permanece. Segundo o presidente, enviados do governo vão negociar com as Farc possíveis próximos passos e continuará buscando a paz durante seu mandato.

O líder rebelde, Timochenko, disse que as Farc continuam dispostas a encerrar o conflito. Há um temor generalizado de ocorra um retrocesso nas negociações, iniciadas há quatro anos pelo atual presidente do país, Juan Manuel Santos.

O cessar-fogo continua

Ao reconhecer a vitória do “sim”, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, anunciou que estabeleceria de imediato um diálogo com as forças políticas que rechaçaram o acordo.

“O cessar-fogo, bilateral e definitivo, continua em vigor e continuará em vigor”, reafirmou Santos em sua primeira mensagem aos colombianos após o plebiscito. “Não vou me dar por vencido; continuarei buscando a paz até o último minuto de meu mandato porque esse é o caminho para deixar um país melhor para nossos filhos”, acrescentou.

Já o líder das Farc, Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, assegurou que a guerrilha se manterá aberta ao diálogo.

“As Farc mantêm sua vontade pela paz e reiteram sua disposição de usar somente a palavra como arma de construção rumo ao futuro”, disse Timochenko.

A declaração foi feita em Havana, capital de Cuba, sede das negociações da guerrilha com o governo colombiano.

“Ao povo colombiano que sonha com a paz, conte conosco. A paz triunfará!”, acrescentou.

Negociações com o ‘não’

O ex-presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, comemorou com centenas de seguidores a vitória do “não” no plebiscito. Ele afirmou que ninguém deseja a volta da violência, mas cobrou que as demandas daqueles que são contra o acordo sejam ouvidas.

“Digo aos jovens colombianos: a paz é ilusória, os termos do acordo de Havana, decepcionantes”, disse Uribe, líder da campanha do “não”.

Entre os principais pontos de discórdia está a anistia aos guerrilheiros que cometeram crimes de guerra, assim como a possibilidade de que eles possam prestar concursos públicos.

Agora, a negociação de quatro anos do governo colombiano com as Farc, que terminou com a assinatura do acordo de paz no 26 de setembro, terá de ser invariavelmente estendida.

“Amanhã mesmo (hoje) convocarei todas as forças, e em particular as que se manifestaram hoje pelo ‘não’, para ouvir o que elas têm a dizer, para abrir espaços de diálogo e determinar o caminho a seguir”, afirmou Santos no domingo.

O presidente colombiano reconheceu que seu governo está enfrentando uma “nova realidade política”. Ele disse que a busca de acordo com os rivais “é agora mais importante do que nunca”.

Em resposta a Santos, Uribe disse que ele e sua força política vão “formar um grande pacto nacional”, incluindo quem votou pelo “sim” e quem se absteve neste domingo.

O plebiscito era político

Desde que a realização do plebiscito foi aprovada pela Suprema Corte colombiana, em julho, os magistrados deixaram claro que a aprovação do acordo de paz dependeria unicamente da sanção presidencial.

Ou seja, submetê-lo ao crivo popular foi uma jogada muito mais política do que jurídica – e que acabou se provando um erro.

No domingo, Santos disse que buscará negociar uma solução com as forças políticas opositoras e descartou usar seus poderes como presidente para aprovar o acordo após a rejeição das urnas.

O presidente afirmou que orientou Humberto de la Calle, chefe negociador do governo colombiano nos diálogos com as Farc, e Sergio Jaramillo, alto-comissário para a paz, a viajarem nesta segunda-feira a Cuba para reiniciar as negociações com a guerrilha.

Mas, em declaração no Palácio de Nariño, sede do governo colombiano, De la Calle colocou seu cargo à disposição e disse que “seguirá lutando pela paz até o último dia de minha vida, mas não mais à frente dessa equipe”.

Incerteza

Santos enfrenta um dos momentos mais difíceis da história recente da Colômbia.

Para Andrei Gómez-Suárez, professor da Universidade dos Andes e membro da ONG Rodeemos el Diálogo, a vitória do “não” pode gerar uma fragmentação das Farc.

Na avaliação do especialista, embora os líderes da guerrilha tentem proteger o acordo, células locais poderiam receber a rejeição do povo colombiano como um sinal para retomar a violência.
A rejeição ao acordo também tem um impacto negativo na economia a curto prazo, estimam os analistas, com uma queda do peso colombiano e dos investimentos estrangeiros em meio às incertezas.

Mas Santos acredita que sua aposta no diálogo em um país dividido será chave, como disse no domingo.

“Vamos decidir juntos qual o caminho que devemos tomar para que a paz, essa paz que todos queremos, seja possível, e saia mais fortalecida desta situação.”