quinta-feira, 25 abril, 2024 09:00

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As crianças e o mito dos contos de fadas

Por que tratamos nossas crianças como brinquedos?

Por que o mundo das crianças está situado numa espécie de reino, o mais distante possível da nossa realidade, um espaço repleto de fantasias, de coisas fáceis, de pessoas gentis, onde o bizarro é coisa inexistente, onde os problemas e dilemas humanos não são sequer mencionados, isso, não temos como saber.

Mas, sabemos que é assim, esse é o critério. É a prática comum desde incontáveis gerações. É a conduta aceita e autenticada pelos sistemas cognitivos de todas as nações, pelos especialistas em educação, pelos cientistas sociais.

E, naquele mundo, onde não existem doenças ou anomalias sociais, todo mal é tratado como um vilão, que atua de fora para dentro do indivíduo, como se fosse uma entidade desagregada deste. E ali, a violência é retratada como uma coisa romântica, capaz ser resolvida pela simples presença de um super-herói, ou divindade, que, de repente, irá surgir do nada, ou sempre que for solicitado.

Um mundo utópico, abstrato, onde os sonhos se concretizam, onde apenas as coisas que dão certo são mencionadas, onde o mal é retratado apenas por uma palavra, sem exemplos capazes de ilustrar o que significa. Um epicentro, onde a realidade é totalmente deixada de lado, onde o idealismo e fantasia dos chamados contos de fada predomina.

Os contos de fada, como nós os conhecemos, têm sua origem na idade média, na mesma época da repressão religiosa, das injustiças sociais. Foram criados a partir dos devaneios de alguns escritores, para entreter um público carente de sonhos, pessoas que viviam sufocadas, encarceradas, esmagadas pela opressão dos costumes daqueles tempos. Tratando-se, portanto, de uma deliberada concepção surreal, uma fuga à realidade, que logo, no imaginário de cada um, se tornaria tão real quanto o são as coisas concretas.

E eis a base de toda nossa educação, no hemisfério ocidental – no oriente não é diferente -, e que como crianças iremos absorver à revelia da nossa vontade. Se vivemos em um mundo de constantes desafios, onde os problemas e múltiplas atividades do nosso dia a dia preenchem todas as nossas horas de vigília, imersos em disputas e conflitos sem fim, afinal de contas, o que existe de concreto para nós como objetivo de vida?

A verdade é que, não estamos no controle da situação, as circunstâncias sim. Somos regidos na íntegra, não pela nossa vontade e querer, mas pela necessidade constante de solucionar problemas. Resolver problemas, grandes ou pequenos, este é o nosso atual objetivo de vida. Não criamos nada disso, tudo foi criado antes de existirmos.

Se ensino para meu filho que existe um mundo imaginário – para ele isso é coisa real – onde todos são capazes de, pela simples vontade, viver qualquer tipo de sonho possível de ser criado pelo pensamento, como espero que devam reagir ao descobrirem mais tarde, sufocados pela competição e realidade da vida, que tudo aquilo era apenas uma grande ilusão, uma incompreensível e pavorosa mentira?

Por incrível que possa parecer, irão ensinar a mesma coisa para seus filhos. O problema é que, como adultos, dentro do seu imaginário mais profundo, aquele ideário mesmo que agora pareça um devaneio, ainda permanece vivo. E agora ele terá como amparo a força de suas crenças pessoais, especialmente aquelas de cunho religioso, que lhes asseguram e atestam, de fato, a existência daquele mundo repleto de coisas maravilhosas e indescritíveis júbilos, que foi criado especialmente para servi-los, mesmo que depois de mortos.

Ocorre que, nossas crianças, quando crescidas, irão enfrentar problemas concretos, problemas sérios que ainda não conseguimos resolver, e conhecê-los desde cedo, talvez, faculte-as a decidirem melhor se desejam permanecer com eles, como companheiros inseparáveis, como nós o temos feito. Ensinar para a vida começa quando, através do competente e edificante esclarecimento, desde cedo, mostramos o que é o viver, suas facetas, seus conflitos e distorções ainda pendentes de soluções, o imenso e complexo problema no qual se tornou a aventura existencial do homem.

Para que uma criança seja capaz de resolver seus conflitos, que são os nossos atuais, desde cedo, precisarão aprender a conviver com eles. Tanto os conflitos quanto suas causas, tudo isso, são coisas que deveriam aprender conosco, na segurança da nossa companhia, proteção e carinho, assim como os aspectos bizarros que também fazem parte da realidade, tais como o ódio, a idolatria, o fanatismo, antipatia, ou coisas edificantes como a empatia.

Se ignorarmos tudo isso, se deixamos passar essa oportunidade, onde elas irão buscar esse esclarecimento? Entrarão no mundo como um indivíduo que entra na mata sem repelente apenas por ignorar a existência de mosquitos, desavisadas, passando pelas mesmas dificuldades e sofrimento que também um dia passamos? E o mais importante, qual será a qualidade da fonte que se encarregará de preencher suas cabeças com tais informações? Veja bem, atualmente, o homem padece de conflitos sem fim exatamente porque um dia seus antecessores confiaram a terceiros esse esclarecimento.

Educar não seria lhes ensinarmos como sair dessa imensa e complexa confusão que, embora não a tenhamos criado, somos fiéis multiplicadores? Será que somos capazes de viver sem conflitos e sem medos? Teremos, de fato, tal potencial?

Se temos esse potencial ainda não fomos capazes de colocá-lo em prática. Se não somos capazes de mudar nada, de que forma essa transformação irá ocorrer no mundo dos nossos filhos, uma vez que, sem depender de suas vontades, eles herdarão tudo que psicologicamente agora somos, inclusive nossa incontestável incompetência em resolver os mais triviais conflitos existentes em nossas relações.

Se eles precisam de ajuda, acreditamos que nós precisamos ainda mais. Precisamos acordar, precisamos parar de sonhar, de acreditar que as fadas virão do seu reino, numa missão especial, com o único objetivo de transformar, com seu encantamento varinha de condão e tudo mais, todo desarranjo criado por nós. Se acordarmos temos chance de mudar. Despertos, temos a chance de ensinar-lhes a construir a partir da nossa mudança, a partir do alicerce que deixaremos para eles.

As crianças precisam conhecer um pouco sobre a vida que terão pela frente. Precisam conhecer as pessoas, seus pontos fracos, suas possíveis falhas e limites. Precisam saber que suas mães, periodicamente, quando sofrem bruscas mudanças em seu estado humoral, estão a passar por processos orgânicos naturais, que a moderna ciência chamou de Tensão Pré-menstrual.

Isso decerto evitaria inúmeros conflitos internos com seus filhos, que por não compreenderem essa brusca mudança de comportamento na pobre matriarca, logo tiram conclusões equivocadas, e na maioria das vezes acabarão por considerar tudo aquilo como retaliação intencional, despeitas pessoais, o que, tende a afetar todo equilíbrio e harmonia do grupo familiar.

As crianças precisam saber desde cedo o que significa ficar velho, afinal de contas, com sorte, no futuro, a maioria delas também terão que passar pela mesma condição. Sendo a velhice um processo natural e fisiológico, involuntário e irreversível, elas não poderão escolher e mudar seus destinos. Então, por que esse processo nós escondemos delas como se fora coisa inexistente?

Não seria uma forma lógica e inteligente de, além de criarmos, entre jovens e idosos, um maior vínculo de empatia e respeito, também favorecermos uma maior aproximação entre as diferentes faixas etárias, diante da clara indiferença dos mais jovens em relação à velhice, que atualmente é a regra em nossa civilização? E o mais importante, também seria uma forma de alerta para a inevitável condição que aguarda a maioria desses jovens.

Educar para a vida contempla o lado teórico seguido do imprescindível exemplo prático. É a teatro da vida, onde o conceito se transforma em conteúdo, quando pode ser experienciado. Para que isso ocorra, o princípio da dúvida deve ser cultivado, e depois introduzido na grade do repertório cognitivo, tudo isso desde as primeiras séries.

Lembrem-se, a lavagem cerebral do mundo, com suas distorções e absurdos, começa cada vez mais cedo. Se nossos filhos não tiverem uma predisposição natural ao questionamento, se os pontos positivos dos seus temperamentos não forem cultivados e potencializados, se não estiverem livres para duvidar, investigar e mudar, então, o destino de todos já está selado.