quarta-feira, 24 abril, 2024 01:58

MATÉRIA

Entre “ALHOS e BUGALHOS”

Na polarização política, sobra surdez e intolerância entre amigos. (Luís Wesley)

Posicionamentos políticos, ao longo da nossa história sempre tenderam a dividir pessoas e gerar tensão entre grupos ideologicamente homogeneizados, mas nunca como agora. O que temos hoje é a mais pura polarização que impermeabiliza o diálogo das partes fragmentadas, desfaz opiniões que deveriam ser livremente expressas, recebidas e processadas, como numa verdadeira con-versação (o hífen é intencional).  Ao longo dos últimos 2-3 anos, relações interpessoais entre bons amigos brasileiros, e até entre membros de uma mesma família, tornaram-se flagrantemente quebradas e confrontacionais.  Ver-se entre “alhos e bugalhos” político-ideológicos hoje passou a ser assustadoramente corriqueiro.

Fiquei atônito quando uma amiga que tenho há quase 40 anos, que considero mais próxima do que minhas próprias irmãs de sangue, passou a me hostilizar, taxando-me de “reacionário, incitador de golpe, etc.”  Isso me fez perder, e muito, da liberdade que tinha para conversar sobre qualquer assunto.  A razão alegada foi única: Numa daquelas muitas manifestações que pipocavam no Brasil à quase toda semana, postei no “timeline” do meu Facebook uma pergunta, a meu ver muito simples, curta e objetiva: “Alguém aí sabe se há aqui em Atlanta alguma mobilização de protesto, a exemplo do que ocorre no Brasil, de forma que estejamos sintonizados com o que se passa no nosso país?”

“Reacionário, golpista”?  Suas palavras bateram tão forte e em tal dissintonia com o que, até então, caracterizava nossa amizade, que desejei excluí-la de minhas relações, a começar pelo Facebook e indo até o fechamento de qualquer espaço afetivo, pra não ter que ouvir novamente tanta asneira engomada com ferro ideológico incandescido.  Mas, como fazer isso com alguém que sempre esteve acima de quaisquer opções políticas, projetos partidários ou preferencias ideológicas?  De qualquer forma, rompesse ou não, aquela relação de amizade, anteriormente marcada por apreço mútuo, respeito, alegria e abertura, havia se transformado, repentinamente e como nunca antes, em certa agressão verbal em torno de questões meramente políticas de contornos ideológicos ocasionais.

A meu ver, este caso não é único.  Com todas as variantes possíveis, isso se repetiu e ainda se repete com milhares, senão milhões de pessoas em torno de extremos atuais, tais como: Esquerda versus direita, PT versus PSDB, “É golpe!” versus “É processo legal de impeachment”, “Volta Dilma!” versus “Fora Temer!”, etc.

Na experiência descrita acima, não foi apenas minha amiga quem descarrilou e não ouvia mais.  Eu também caí no mesmo lodo relacional!  Ela queria apenas repetir, como papagaia-desaforada, aquele conjunto discursivo quase ensaiado para ser repetido quando necessário.  Eu também me radicalizei, usando a estratégia de taxa-la de “PTista”, de quem precisa ir embora para Cuba, o que, naquele contexto, com toda a razão, caiu como um insulto sub-humano que a reduziu ao infinito do que ela é enquanto pessoa, enquanto gente que tem história, mãe, irmã e profissional.  Na defensiva, ela queria ser ouvida apenas, e também tomou o caminho da perspectiva unilateral — a dela, i.e., do projeto político do grupo com o qual se identifica! —, do radicalismo, do recrudescimento, do silenciamento do outro via taxação generalista.  E eu fiz pior: parti para duas outras formas de ataque, a de ironizar e, depois, a de tirar meu time de campo, dizendo que não mais conversaria sobre este assunto.  E, assim como nós o fizemos das perspectivas únicas próprias de cada um e de cada lado, outros também o fazem de outras.

Mas, afinal, o que há de novo e gerou e ainda gera tanto conflito?  Seria a política e os maus políticos?  Ora, as duas coisas já existem há muito!  Teria alguma coisa a ver com diferenças ideológicas?  Ideologia é coisa sutil, divide mesmo, mas é muito antiga também!  Seria, então, a má administração do nosso país?  Isso já se repete há décadas e ao longo de gerações em nossa nação, como em quase todas as nações!  Seria a proporção que ganhou a corrupção e o acinte com que a praticaram?  Nada excepcional, certo?  E não vimos nada ainda!  Basta esperar o estouro da roubalheira no BNDS.  Assim, nenhuma das razões acima são novas.

Polarização como
embaralho

O que há de novo, realmente, ao menos na intensidade com que se apresenta, é o quanto nós brasileiros fomos forçados, empurrados mesmo, à uma só abordagem relacional — a polarização.  Sem o saber, fomos feitos alhos ou bugalhos!  Mas o que é mesmo “polarização”?  É, antes de tudo, uma das estratégias mais safadas da política, cuja intensão é confundir a informação, desviar a atenção, e, desta forma, embaralhar a reflexão, controlar a ação e criar um conflito “necessário”.  Polarizar é, essencialmente, um ato de manipulação mental coletiva, com fins meramente políticos de autopreservação do status quo de alguém ou de algum grupo que quer, a qualquer preço, chegar ou manter-se no poder!

Para esconder ou camuflar os problemas reais e para que ninguém se atreva a lidar com eles de forma incisiva, direta e pública, procura-se um “bode expiatório”, um terceiro motivo.  Este, uma vez fabricado, comunicado e magnificado, faz com que nada mais dos problemas reais ganhe a importância que o adversário deseja, servindo como esconderijo das mazelas e bloqueio temporário de instabilidades indesejadas por uma ou ambas as partes.  Isso pode acontecer com um grupo de amigos, em famílias, em igrejas, com um país inteiro e até com o sistema de relações socioeconômicas globais.  Exemplos desse último são: norte versus sul, oriente versus ocidente, capitalistas versus socialistas, pobres versus ricos, ou cristianismo versus islamismo.

A lógica da polarização é a de criar um problema, digamos, sem dono, para alguém, mais tarde, apresentar-se como solução.  Os grupos envolvidos tinham interesse em que nós, o povo, víssemos uns aos outros como o problema do país para, depois, eles próprios dizerem, “Nós é que somos a solução!”  Manifesta-se em toda parte, embora pouco notada com a clareza com que vimos e vemos ocorrer na nação brasileira que vive na Terra Brasílis ou que está espalhada pelo mundo inteiro. O que aconteceu com os brasileiros é que nos dividiram mortalmente.  Enquanto isso, as raposas, que são espertíssimas, rápidas e não dormem à noite, tomaram conta do galinheiro!

Uma vez que uma dada polarização é estabelecida, o diálogo, a con-versa construtiva vai para o ralo.  Por que?  Porque na polarização a culpa nunca será minha ou do nosso grupo, mas sua ou do grupo que você ou suas ideias representam.  “Você, onde já se viu, está contra mim!”  Assim, o problema e a solução estão, hipotética e alegadamente, identificados: “Somos os dois lados diametralmente opostos, os polos, os extremos.  O resto?  Dane-se o resto!  Terão que decidir de que lado estão!  Se estiverem do meu lado, estarão necessariamente contra você, e vice-versa.”

Polarização como atalho

Nós, brasileiros, passamos a nos achar no meio deste jogo que é maior e mais complexo do que a maioria das pessoas consegue discernir ou perceber.  Por esta razão, lançam-se em conflitos fabricados que nada mais são do que atalhos que conduzem diretamente a mecanismos de mascaramentos da realidade delas próprias.  Por isso digo que polarizar é uma jogada de mestre na tentativa de achar atalhos quando o que se tem são apenas alhos e bugalhos.

Nessa polarização, que não foi criada nem por mim, nem por você, meu caro leitor, nos vemos sentenciados a estar entre cruzes e punhais, numa verdadeira situação do tipo “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”.  E ficamos sob a pressão de ser ou Coxinha ou Mortadela — “Escolha!” — e, no caso de nos recusar a representar plenamente um dos dois, termos que passar pelo clássico corredor-polonês, como o que eu próprio experimentei em inúmeras ocasiões, incluindo o que se passou comigo e minha amiga.  Parece não ter sobrado nenhuma outra opção senão ter que se posicionar por esta ou aquela, obrigados a agir ou pensar de uma entre duas maneiras únicas, sem meio-termo.

Foi por esta via polarizada de exigência política que nossas relações humanas foram redesenhadas, não para melhorarem, mas para piorarem — a lógica do “Quanto pior, melhor!”  Como consequência, inúmeros lances de ódio tomaram conta, a demonização do outro tornou-se epidêmica, agressões se tornaram o meio de defender ideias, taxação se tornou a forma de não ceder de modo algum.  Ainda que nossa escolha pudesse ter sido por outra via — a de ouvir o outro, a de con-versar, de ter um diálogo fino e respeitoso em que se negocia versões sobre um mesmo assunto, caracterizado pela decisão de não cair na vala comum da polarização político-ideológica e partidária — nossa condenação vinha e vem de ambas as partes.

Conversa aberta e mediação como alternativas

Estaria Raul Seixas correto, quando entoou por todos os cantos que preferia “ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”?  Sim e não!  Se aplicado ao que ocorre nas relações entre os brasileiros em torno de uma série de assuntos, particularmente o político-ideológico, Raul Seixas tem muito a nos ensinar.  O que ele fez foi uma crítica ferrenha às mentes que, na sua época, como em todas as épocas, não queriam ouvir, nem aprender, nem flexibilizar, mesmo quando necessário.

“Eu penso assim e não vou mudar” é uma das expressões que mais ouço ultimamente.  É o mesmo que dizer, “Tenho opinião formada sobre tudo”, “Existo, ambulante, no meio de uma viseira embrutecedora”, “Meus óculos são alaranjados porque, para mim, tudo tem que ser alaranjado”, “Olho tudo pelo buraco de um canudo, e por ele chego às minhas conclusões”, “Sou preto no branco, e pronto”.  Estes que assim agem tendem sempre a fazer perguntas e declarações fechadas, nunca esboçando qualquer desejo de, ao menos, ouvir o que possa ser diferente do que veem e pensam.  Diante deles a gente não tem a mínima chance de apresentar uma outra leitura ou versão mais caleidoscópica sobre um mesmo assunto.

Tentar interagir com gente assim é dar uma de bobo-tocador-de-bumbo para os outros dançarem seus próprios vícios coreográficos tribais.  E, quando você e eu fazemos a mesma coisa, i.e., nos deixamos governar por qualquer fechamento vicioso da mente, seja por um condicionamento interno ou externo, ou, no caso aqui em questão, por uma polarização fabricada para o nosso desgaste relacional, nos fechamos em nossas percepções, opiniões ou leituras que fazemos de tudo.

A porção da filosofia de Raul Seixas que, a meu ver, não serve para as relações entre nós brasileiros nesse momento de radicalismos, é que a alternativa preferencial tenha que ser a de me tornar “uma metamorfose ambulante”.  Ora, se a moda pega ou se deixarmos que isso se estenda demais ao longo do tempo, vamos todos nos tornar “the walking dead” (mortos vivos) que nada mais têm a oferecer senão feiura e adoecimento social.  E aí não se trata mais do “que se danem eles”, mas de “que nos danemos nós todos” enquanto nação.

Em suma, é preciso con-versar mais!  Con-versar (com-vertere) significa, antes de tudo, encontrar ou reencontrar o outro enquanto gente, não enquanto ideias ou escolhas políticas.  É voltar-me a ele ou à ela como pessoa.  É exercitar o desejo pela proximidade.  É hospedar novas perspectivas, dar boas-vindas ao que, a priori, possa soar rejeitável.  É estar junto com o outro, abrindo, na mente e nas emoções, espaços para ouvir, negociar e administrar versões diferentes de forma pacífica e construtiva.  É discutir ideias, não pessoas.  É ver o problema como problema, e não as pessoas como o problema.  É ouvir desejando ser ouvido, e ser ouvido desejando ouvir na mesma forma e intensidade.

Neste momento crucial em que se percebe nossa desconstrução sócio-política e relacional marcada por polarizações, precisamos caminhar na contramão do que alguns poucos safados querem que estejamos — divididos —, porque “um povo dividido não pode prosperar”.  Isso exige mais do que termos a capacidade de con-versar.  Mais que tudo, requer que nos tornemos mediadores.  Requer que façamos crescer mais os ouvidos e diminuamos mais a boca.  Exige que sejamos pontes, não paredões.  Pacificadores, não espalhafates.

O momento chama por convivência comunitária onde caiba mais do que uma só ideia, opinião ou posição.  Chama-nos a buscar por diversidade de toda espécie, porque só ela pode nos levar à maturidade democrática, ao respeito e ao apreço mútuo.  Chama-nos a voltar, em nossa convivência, a sermos simples como crianças.  Não simplistas, porque o que está em jogo é o nosso futuro enquanto sociedade que construímos juntos.  Como numa adaptação que fiz de um poema de Francisco E. Estello, “Mesmo que o tempo se acumule em nossos ossos, preservemos corações de crianças, porque elas são as que sabem como amar”.