quinta-feira, 25 abril, 2024 22:04

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A dependência química começa em casa

“Onde para cada problema existe uma solução química, a dependência química é a decorrência natural “

O problema, segundo profissionais como o psicólogo Fernando e a psiquiatra Sandra, é que muitas famílias adotam um modelo de comportamento permissivo em relação às substâncias químicas, utilizando-as como alternativa para a solução imediata de suas angústias. A Dra. Sandra explica que, até o fim da infância, os pais são vistos como referência do que é certo e somente na adolescência, quando passam a ter contato com outros modelos de comportamento, que começam a questiona-los. Mas é na infância que o indivíduo estabelece sua forma de lidar com o mundo, com as angústias e com as emoções. A médica usa como exemplo o pai que chega em casa e, estressado, toma um whisky, ou a mãe que usa um calmante, como o Lexotan ®, para relaxar. “Ou o pai que, com problemas sexuais, toma um Viagra, ou a mãe que quer emagrecer e, em vez de fazer dieta ou ginástica e adotar hábitos saudáveis, toma um remédio para absorver menos gordura”, complementa ela com mais exemplos.
“Isso resulta em um modelo de que para qualquer problema, uma substância química é uma solução rápida. O que acaba acontecendo é que não se cria o hábito de, em família, conversar para resolver os problemas: toma-se logo um remedinho, bebe-se uma bebidinha, para qualquer coisa”, conclui a Dra. Sandra. “É bastante comum vermos pais que são viciados em remédios, álcool, tabaco, ou mesmo em trabalho, reclamarem ao saberem que os filhos adolescentes estão experimentando maconha, por exemplo”, exemplifica ainda o psicólogo Fernando.

Automedicação: exemplos que passam a mensagem errada
De acordo com a médica, famílias que se automedicam tem mais chances de que seus filhos abusem de drogas tanto lícitas quanto ilícitas, e este é um fato provado pela experiência clínica da maioria dos profissionais da área. Um exemplo clássico citado pela médica é o do uso de vitaminas quando a criança não quer comer, “para abrir o apetite”. A mensagem passada para a criança, explica a médica, está errada. Quanto a isso, o psicólogo Fernando complementa que um dos expedientes utilizados para “abrir o apetite”, com muita freqüência, é o tradicional Biotônico Fontoura ®, xarope que promete abrir o apetite, e que, segundo ele, possui 9% de teor alcoólico, contra 4 ou 5% de concentração alcoólica das cervejas. “O uso diário – às vezes mais de uma vez por dia – deste tipo de produto, administrado para crianças pequenas, pode induzir ao alcoolismo”, alerta o psicólogo.
O diretor do NETPSI lembra também que “não se pode esquecer ainda que há remédios que são feitos para crianças, embora contenham componentes tóxicos bastante fortes.” As crianças descobrem a “farmacinha” doméstica e vão em busca daqueles remédios gostosinhos, como por exemplo alguns xaropes, com gosto doce, ou mesmo alguns comprimidos que parecem balas. Fernando recorda que um grande número de internações de crianças se deve ao consumo de remédios sem controle. “Os pais ou responsáveis devem ter o maior cuidado no armazenamento de remédios em casa. Não se pode deixá-los à mão de crianças: nunca é demais lembrar que remédios são drogas e devem estar guardados em locais fechados, fora do alcance dos pequenos”, alerta.

O imediatismo típico da adolescência
Junta-se a este modelo familiar descrito pela psiquiatra uma das características mais típicas dos adolescentes: o imediatismo. Com estes ingredientes está criado o ambiente onde a dependência química se instala. “O adolescente está preocupado com o agora, e não como o daqui um ano”, alerta a psiquiatra, explicando o porquê dele escolher o prazer imediato em detrimento da saúde no longo prazo. “Em um modelo familiar deste tipo, o adolescente não aprendeu a lidar com a tristeza, o cansaço, a frustração. Para aliviar os seus problemas, ele aprendeu que a saída é tomar um comprimido, beber alguma coisa, ou qualquer outra solução imediata que dê prazer e/ou alívio” continua e médica.
A psiquiatra lembra que crianças e adolescentes não aprendem com discurso, mas com comportamento, com exemplo, com coerência. E aí entram uma série de aprendizados indiretos, muitas vezes não relacionados com as drogas em si, mas que fazem parte deste modelo de que fala a Dra. Sandra. Segundo ela, “de nada adianta ensinarmos na escola as regras de trânsito se depois o pai passa no sinal vermelho na frente do filho: falta coerência na educação familiar”, acusa. “Os pais dizem que é proibido mentir, mas pedem para os filhos dizerem que não estão em casa quando alguém inoportuno telefona”, prossegue a psiquiatra, que ensina que o diálogo é o modelo que precisa ser implantado no ambiente familiar: “Para estar tranquilo em relação ao que espera dos hábitos do filho no futuro, plante isso com ele desde o início. Não espere que ele lhe conte o seu dia se você não lhe conta o seu”.

O consumo de álcool e tabaco também começa em casa
De acordo com o Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Psicotrópicos, desenvolvido pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) realizado em 1999 em 24 cidades do Estado de São Paulo e publicado na edição nº 52 da Revista ‘Pesquisa FAPESP’ (abril de 2000), sob a reportagem de Marta Góes ‘A ameaça maior das drogas legais’, “as drogas que mais devastam os brasileiros podem ser expostas nas cristaleiras ou consumidas em festas de família”. Segundo esta pesquisa, “nas maiores cidades do Estado de São Paulo consomem-se álcool e cigarro em níveis tão altos quanto nos Estados Unidos, mas o uso de maconha, cocaína, crack e outras substâncias ilegais permanecem em patamares tão baixos quanto os de outros países da América Latina”.
Embora essa conclusão pareça mais um daqueles argumentos para legitimar o consumo da maconha, por outro lado desfaz a idéia de que álcool e tabaco não são drogas. O pesquisador José Carlos Galduróz, médico psiquiatra graduado pela Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo – Unifesp), onde fez o mestrado e o doutorado na área de Psicobiologia e também pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), que coordenou o levantamento, diz que o estereótipo de que droga é só maconha e cocaína contribui para o consumo intenso de álcool e tabaco e que, graças a isso, o álcool pode ser anunciado livremente e costuma ser vinculado pela publicidade até à imagem de atletas. Já se sabia que o álcool é o psicotrópico de uso mais difundido no País, mas a estridência dos meios de comunicação ao falar de drogas ilegais sugeria que elas estariam tomando a dianteira como ameaça social. De acordo com o Levantamento da Fapesp, “53% da população experimenta álcool pelo menos uma vez na vida e uma grande porcentagem dos que bebem se torna dependente: entre os homens, um em cada seis. Mais silenciado e em muitas instâncias protegido por uma capa de respeitabilidade, o álcool é consumido regularmente – de três a quatro vezes por semana ou, até, todos os dias – por 4,5% da população pesquisada, ou 673 mil pessoas.
De acordo com as conclusões do estudo realizado em São Paulo, o consumo de tabaco também causa alarme entre os especialistas. Pelo menos 39% dos habitantes das maiores cidades do Estado de São Paulo já fumaram alguma vez, aponta o levantamento. Destes, cerca de 20% – um número estimado em 3 milhões de pessoas – fumam diariamente e chega a quase 10% o número de dependentes de cigarro na população, muitos deles na faixa dos 12 a 17 anos (3,5% ou 84.000 pessoas). O mais incrível é que uma outra pesquisa, do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), de 1997, com estudantes de dez capitais brasileiras, aponta que 40% dos entrevistados de 12 a 18 anos beberam pela primeira vez em casa.