sexta-feira, 26 abril, 2024 09:43

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O que mostra o quadro de Da Vinci que vale 450 milhões

“Salvator Mundi” é a obra de arte mais cara a ser vendida em leilão. Se isso não bastar para perceber a sua importância, saiba de alguns pormenores menos conhecidos que a tornam ainda mais especial.

“O Último Da Vinci” — foi assim que a leiloeira Christie’s apresentou o quadro Salvator Mundi, obra do génio renascentista que estava dada como desaparecida há anos. Na cidade de Nova Iorque, enquanto Portugal dormia, este retrato de Jesus Cristo foi vendido por 450 milhões de dólares (380 milhões de euros) num “duelo” entre quatro licitadores.

O valor pago pela obra (o único dos 20 quadros existentes de Leonardo Da Vinci que está nas mãos de um privado) fez dela a mais cara de sempre a ser comprada em leilão, facto justificável não só por causa da sua importância mas também porque, pela primeira vez, a leiloeira apostou milhares de dólares numa campanha de marketing mundial nunca antes vista. Mas, ao certo, o que faz deste Salvator Mundi (expressão em latim que significa “Salvador do Mundo” e que serviu de conceito base para variadíssimas pinturas, assinadas por diferentes autores, ao longo da História) algo tão relevante? A sua importância histórica, seguramente. Basta ver o seu percurso desde 1500, data em que terá sido concluída e entregue ao rei francês Louis XII, depois deste ter conquistado Milão e Génova.

Passados 125 anos, o quadro seguiu para Inglaterra pela primeira vez quando a princesa Henrietta Maria de França casou com o rei Carlos I. É em solo inglês que se mantém durante décadas, apesar de nunca ter ficado parado no mesmo sítio: em 1651, dois anos depois da morte de Carlos I, o quadro é vendido por 30 libras e esse dinheiro é utilizado para pagar as dívidas do monarca. Mais tarde regressa à mão da família real britânica até que, em 1763, desaparece sem deixar rasto.

No final do século XIX, este Da Vinci que muitos pensaram estar perdido para sempre reapareceu nos Estados Unidos, na coleção privada de Sir Frederick Cook. A 25 de junho de 1958 sabe-se que a obra regressa a Inglaterra e é colocada à venda num leilão da Sotheby’s. Apesar de ser apresentada como sendo uma obra de Boltraffio, italiano que terá trabalhado no estúdio de Leonardo, o quadro é vendido por 45 libras (cerca de 60 dólares, mais ou menos 50 euros) a alguém chamado “Kuntz”.

Em 2005, o quadro volta a aparecer, sendo comprado por 10.000 dólares pelo marchand Alexander Parish. Sete anos mais tarde, o mesmo Parish vende a obra ao francês Yves Bouvier num leilão privado. Nesta altura, Bouvier pagou cerca de 75/80 milhões de dólares, mas pouco depois recebeu o retorno do investimento, tendo vendido o Salvator Mundi ao milionário russo Dmitry Rybolovlev por 127,5 milhões de dólares.

É sabido que Leonardo da Vinci gosta de brincar com o seu público e até com os seus patrões, escondendo, muitas vezes, mensagens secretas em pormenores dos seus quadros. Salvator Mundi está longe de ter o conteúdo polémico de obras como a Virgem das Rochas, mas não é por isso que o autor desperdiça a oportunidade de fazer passar mensagens subliminares.

1 A mão direita, a mão da bênção

Em termos mais técnicos, a posição desta mão foi fulcral no processo de confirmar que esta obra era um original e não uma cópia (em 1650 foram feitos alguns facsimiles que se espalharam pela Europa). Quando ela chegou às mãos da National Gallery, técnicos da instituição britânica e da leiloeira Christie’s submeteram-na a uma bateria de exames. Um deles, a análise raio-x, mostrou que a posição do polegar que hoje se vê não é a original: Leonardo terá pintado esse dedo uns centímetros mais atrás mas não gostou do resultado, tendo pintado por cima e voltado a desenhar. As imagens obtidas hoje em dia mostram isso mesmo e, segundo especialistas da leiloeira, esse é um sinal forte de que esta não é uma cópia — o falsificador não só não saberia que havia outro desenho escondido debaixo do fundo como não o conseguiria replicar.

Dois dedos juntos, semi-cruzados, acompanhados do polegar, também ele ereto. É mais que provável já ter visto este gesto em muitos quadros de inspiração religiosa cristã. O gesto em questão simboliza o ato de benzer e começou a ser utilizado nos primórdios do cristianismo. O símbolo remete à cultura romana, a um gesto que era associado a alguém que queria falar. Depois do Edito de Milão, em 313 A.C., quando Constantino despenalizou o cristianismo, esse movimento ganhou popularidade e, em pouco tempo, foi assimilado por esta nova religião que nascia.

2 A tela e o infinito

Outro elemento importante na confirmação da obra como sendo de Leonardo da Vinci foi a tela. Em análises científicas realizadas pelos técnicos da Kress Program in Paintings Conservation foi possível perceber que ela é feita de madeira de nogueira, material muito utilizado pelo artista no período de tempo em que viveu em Milão.

Deu ainda para perceber também que havia um nó muito grande nesta tábua. Com tempo, essa irregularidade fez com que a tela se separasse. Eventualmente, alguém terá retocado a imagem e consertado a fenda mas o resultado desta recuperação (que muito provavelmente foi feita de forma errada) deturpou a realidade da obra e isso explica a demora que houve em confirmar que este quadro era mesmo de Leonardo da Vinci.

O fundo totalmente negro terá sido feito deliberadamente, para que todas as atenções se centrassem na imagem religiosa. Este efeito também tem contornos metafóricos, pois faz-se a alusão de que nada mais importa sem ser Jesus Cristo.

3 Homem e mulher

Olhando para este rosto de Jesus Cristo é difícil identificar um traço masculino vincado, coisa que não acontece em outros retratos de homens feitos por Leonardo da Vinci (veja-se o famoso Homem Vitruviano, por exemplo). Teoricamente, estas feições mais andrógenas foram concebidas de propósito. Ao juntar traços masculinos com femininos o autor pretende colocar ambos os sexos em pé de igualdade, dando a crer que ambos estão em união perante o poder divino.

4 A cor da verdade

Um dos testes essenciais no processo de autenticação de pinturas passa pela identificação dos pigmentos utilizados. Em laboratório, os técnicos isolam-nos e depois comparam-nos com registos de época, tentando perceber se o pigmento X era utilizado na época Y. No caso deste Salvator Mundi, a análise serviu não só para confirmar que sim, na altura em que Leonardo o pintou, estes eram os pigmentos utilizados, mas também houve outra descoberta que fortaleceu a comprovação. O azul da toga de Jesus Cristo é feito a partir de lapis lazuli, rocha de cor azul forte que Leonardo Da Vinci adorava.

5 A esfera, o grande ponto de interrogação

Na mão esquerda da figura pintada vê-se uma esfera transparente apoiada na palma da mão estendida. Regra geral, a inclusão de um globo em pinturas religiosas (e não só) não significa nada de muito complicado: no traçado convencional, esta forma redonda costuma ter uma cruz em cima, simbolizando o domínio de Cristo sobre o mundo. O problema? A esfera deste Salvador Mundi não tem cruz.

Esta constatação baralhou muitos dos estudiosos que analisaram a obra, levantando várias dúvidas sobre o que é que significava. Depois de muitos estudos, chegou-se a um consenso que também ajudou a comprovar que foi Leonardo a pintar este quadro.

Segundo Martin Kemp, professor emérito de História da Arte em Oxford, o veredicto sobre esta forma conclui que ela é feita de cristal rochoso, porque tem algo a que os geólogos chamam de “inclusions”, pequenas falhas ou buracos na superfície do objeto. O que é que isto significa? Kemp defende que esta referência surge por causa das Esferas Celestiais, estruturas pensadas por astrónomos como Aristóteles ou Copérnico, onde supostamente circulavam as estrelas. Mas há quem veja nisto outro significado.

Walter Isaacson, que escreveu a biografia Leonardo da Vinci (que será adaptada ao cinema em breve e terá Leonardo di Caprio como protagonista), diz que Leonardo “não pintou a distorção que deveria acontecer sempre que olhas através de um objeto redondo”, facto estranho, principalmente tendo em conta que Da Vinci se encontrava a desenvolver vários estudos sobre lentes na altura em que pintou este quadro.

Isaacson é da opinião que o efeito ótico não foi retratado propositadamente: “Ele [Leonardo da Vinci] sabia muito bem o que tinha de fazer, mas escolheu não fazê-lo. Acredito que com esta suposta falha ele queria adicionar ao retrato de Jesus Cristo a noção de milagre.”