terça-feira, 23 abril, 2024 08:16

MATÉRIA

Uso de máscara, homens negros e o racismo institucional em tempos de pandemia

Como as medidas de prevenção e controle aprofundam a violência racial?

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esde que a recomendação do uso das máscaras em ambientes públicos tornou-se uma medida adicional de prevenção e controle  da pandemia da COVID-19 em muitos estados e cidades brasileiras, têm-se levantado discussões sobre as implicações do seu uso em alguns grupos populacionais específicos, à exemplo da população negra. Esta discussão é relevante, especialmente, quando nos referimos aos homens negros, uma das maiores vítimas da violência policial no país. O uso de máscaras se apresenta como um um dilema para os homens negros, dado que eles são sempre considerados suspeitos nas abordagens policiais, imagina usando máscara? Então, os negros estão no meio de duas decisões que rebatem diretamente nas suas vidas: usam máscaras e se protegem da COVID-19 ou se expõe ao coronavírus para não correr o risco de serem “confundidos” com “bandidos” e serem assassinados pela polícia? É nessa encruzilhada de violências que se instala o racismo, sobretudo o institucionalizado.

O racismo a partir do processo histórico e ideológico tem ao longo do tempo determinado os lugares sociais de negros e brancos, sendo que este lugar criminaliza a população negra, principalmente os jovens negros.  E o racismo institucional é quando um órgão, entidade, organização ou estrutura social cria um fato social hierárquico como estigma visível, ou define espaços sociais reservados para negros e brancos, pois é no funcionamento da sociedade que o racismo, como uma propriedade estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegura a dominação e a inferiorização dos negros. E a filtragem racial ou racial profiling é um desses mecanismos rotineiros que são “práticas racialmente tendenciosas de identificação de suspeitos” sendo a cor da pele ser um fator determinante nessa decisão.

Violência

Essa prática de filtragem racial por policiais no Brasil têm sido objeto de interesse da comunidade acadêmica/científica e embasou a criação da campanha “Vidas Negras”, iniciada pela ONU com o objetivo de “ampliar, junto à sociedade, gestores públicos, sistema de Justiça, setor privado e movimentos sociais, a visibilidade do problema da violência contra a juventude negra no país, chamar atenção e sensibilizar para os impactos do racismo na restrição da cidadania de pessoas negras, influenciando atores estratégicos na produção e apoio de ações de enfrentamento da discriminação e violência”. Entre 2017 e 2018, dados da 13ª edição do Anuário da Violência, revelam que 75,4% das vítimas mortas pelas polícias brasileiras eram negros (pretos e pardos). Em busca de entender qual o perfil das vítimas da letalidade policial no Brasil, o Fórum investigou 7.952 registros de intervenções policiais terminados em morte, no período de 2017 e 2018.

Para além da violência policial apenas, os dados do Atlas da Violência (2019) no Brasil demonstram que 75,5% das vítimas de homicídios no país foram indivíduos negros. A taxa de homicídios entre a população negra é de 43,1 por cada 100 mil negros, enquanto que essa taxa entre os não negros foi de 16,0. Em termos proporcionais e considerando a população especifica, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. Se considerarmos a população jovem, entre brancos de 15 a 29 anos, a taxa em 2017 era de 34 por 100 mil habitantes contra 98,5 a cada 100 mil habitantes entre jovens pretos e pardos. Fazendo o recorte apenas dos homens negros nessa faixa etária, a taxa de homicídio sobe para 185.

Este aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no país, no período pré-pandemia, embasa nossa discussão atual. Em face de riscos acumulados tanto na violência policial como na generalizada e cientes da filtragem racial a qual estão sujeitos em todos os espaços que circulam, como assegurar que jovens negros podem circular nas cidades do Brasil com seus rostos parcialmente cobertos por máscaras?

As máscaras

Nos EUA, após a recomendação do uso de máscaras pela Centers for Disease Control and Prevention (CDC), houve relatos de violência e perseguição policial e injúria racial contra negros que estavam usando máscaras. Alguns relatam que, devido ao uso de máscaras faciais, eles tiveram que modificar a sua forma de vestir, na tentativa de passarem desapercebidos e/ou chamarem menos atenção, em especial em locais de predominância branca. Existe também o receio, por parte de homens negros, de usar as máscaras como medida protetiva contra à COVID-19, devido ao medo de serem presos, assassinados ou espancados pela polícia nos EUA, preferindo se exporem aos perigos da contaminação pelo SARS-CoV-2.

No Brasil, os relatos iniciais apontam a ocorrência de injúria racial, perseguições e violência policial contra homens negros usando máscaras. Uma enquete realizada pela Alma Preta em sua mídia social, aponta que 72% das pessoas negras que responderam a enquete tinham receio de usar as máscaras faciais em espaços públicos, dado o risco de sofrerem ataques raciais.

O contexto histórico, social e político do Brasil tem contribuído para a perpetuação e persistência das desigualdades étnico-raciais no país ao longo dos anos. Dados nacionais têm apontado as desigualdades raciais na distribuição de renda, condições de moradia, indicadores de violência, educação, mercado de trabalho e representação política, revelando a concentração das desvantagens sociais na população negra. O último levantamento do IBGE (2019) aponta a continuação da segregação racial no mercado de trabalho, onde a presença dos negros é mais acentuada nas atividades que possuem menores rendimentos, à exemplo da agropecuária (60,8%), construção civil (62,6%) e serviços domésticos (65,1%), enquanto os não negros são a maioria nas atividades com rendimentos  superiores à média em 2018, como o setor da informação, finanças, administração pública, educação, serviços sociais, entre outros. Homens negros estão na rua, porque são eles, assim como as mulheres negras, os que estão inseridos no mercado informal de trabalho, na uberização dos serviços e nos serviços considerados essenciais, expondo-os a um acúmulo de risco, não só em relação ao coronavírus, mas também aos aspectos diários do racismo cotidiano. Ao se deslocar será suspeito preferencial de crimes, sofrerá humilhações públicas, revistas ilegais e vexatórias, o que é uma ameaça ao seu bem-estar e à sua saúde física e mental.

Proteção

No artigo Homens negros e suas máscaras a pesquisadora e psicóloga Jeane Tavares chama a atenção com “dicas” para os homens negros, no meio termo, entre se proteger da COVID-19 e se distanciar da suspeição policial, ou seja, da filtragem racial. Essa iniciativa da pesquisadora nos faz lembrar das mães e avós negras das comunidades que traçam toda uma recomendação quando os jovens negros vão para rua, no sentido de não ser abordado pela polícia e não ser considerado “suspeito”.

É importante reconhecer que o racismo institucional no contexto da pandemia se aprofunda, neste sentido gestores públicos, assim como os servidores, devem enfrentar a crise sanitária considerando os contextos estruturais que o racismo condiciona a vida de negras e negros. Sobre isso, na Câmara dos Deputados tramita um Projeto de Lei (PL 5875/2019) que altera o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010) para dispor sobre o conceito de racismo estrutural e sobre o combate desta modalidade de discriminação racial nas organizações públicas e privadas,  recomendando que “Policiais federais, civis e militares deverão ter curso específico sobre enfrentamento ao racismo e direitos constitucionais no curso de formação. E os planos nacional, estaduais e municipais de segurança pública devem prever ações contra a prática”. Assim como lembramos que estamos vivendo a Década Internacional para Afrodescendentes (2015 a 2024) instituída pelas Nações Unidas  e que a discussão sobre as vidas negras e violência racial é um ponto central e considera que os Estados, dentre eles o Brasil, devem garantir igualdade no acesso à justiça e proteção igual da lei, eliminar a violência policial e a filtragem racial.