As informações pessoais que concordamos em fornecer a um aplicativo podem ser vendidas a centenas ou milhares de empresas — e até mesmo acabar na “dark web”.
Embora a magnitude dessa “economia de dados“ não seja algo amplamente conhecido, a verdade é que há cada vez mais alertas e reclamações sobre os abusos das plataformas virtuais em relação à nossa privacidade.
Um exemplo disso foi a onda de críticas ao WhatsApp ao anunciar que compartilharia as informações de seus usuários com o Facebook. Esse fato fez com que seus concorrentes Signal e Telegram, que dizem ser mais seguros, fossem baixados massivamente.
Diante da reação negativa, o WhatsApp anunciou que o início do compartilhamento de dados seria adiado de 8 de fevereiro, conforme divulgado no começo de janeiro deste ano, para 15 de maio de 2021. Professora de Oxford e especialista em privacidade e proteção de dados, Carissa Véliz argumenta que a mudança no WhatsApp é bastante invasiva. Porém, ela afirma que o verdadeiro “abutre dos dados “é o dono do aplicativo de mensagens: o Facebook.
Qual a importância das mudanças anunciadas pelo WhatsApp?
Carissa Véliz – À primeira vista, não parecem mudanças tão radicais. Porém, o que o WhatsApp planeja fazer é um ato bastante invasivo.
Para entender o contexto, é importante lembrar que o Facebook comprou o WhatsApp em 2014 e, na época, prometeu que as duas empresas não compartilhariam dados.
Em 2016, porém, houve uma mudança na postura e o Facebook decidiu que os usuários poderiam decidir se compartilhariam as informações entre as plataformas ou não. Agora, decidiram que não haverá mais oportunidade para rejeitar o compartilhamento de dados: se não aceitar a condição, não poderá mais usar o WhatsApp. Por isso acredito que o público reagiu.
Em primeiro lugar, porque são medidas bastante intrusivas. Alguns dos metadados podem ser usados para identificar as pessoas. Nisso, quero dizer que terão acesso a seu número de telefone, os números dos seus contatos, as fotos do seu perfil e quando você esteve online pela última vez. Além de dados relacionados à situação da bateria do seu celular e sobre o uso do aparelho.
Em segundo lugar, é um lembrete de quão autoritárias essas empresas são. Elas te apresentam condições de uso que estão mudando o tempo todo. E depois que usar o aplicativo por anos, te dizem “tudo ou nada“; entrega os seus dados ou não pode mais usar a plataforma, perdendo suas mensagens e seus contatos que cultivou com a gente durante muito tempo.
Depois de tantas promessas quebradas e tantas mentiras e escândalos, os usuários estão fartos de serem explorados dessa forma, de não serem tratados com respeito e não poderem negociar. Por isso, acredito que a resposta às mudanças do WhatsApp foi tão negativa.
Quanto o WhatsApp e o Facebook podem saber sobre um usuário? Até que ponto eles podem traçar o perfil de uma pessoa com os dados que possuem dela?
Véliz – Tudo depende do quanto a pessoa usa o aplicativo e quantas informações fornece sobre si. Porém, é possível inferir respostas a todos os tipos de questões. Por exemplo, quem são os seus amigos, quem são os seus familiares ou quem é o seu parceiro.
A partir dos dados é possível inferir aspectos como a orientação sexual, tendências políticas, o quão bem a pessoa dorme, se é alguém que levanta no meio da noite para ver as suas mensagens, a sua saúde e os seus interesses. Até mesmo seus vícios ou se você tem alguma doença.
Em seu livro mais recente, você fala que existem os “abutres de dados”. Como eles funcionam?
Véliz – São essas empresas que se dedicam a vender os registros das pessoas pelo preço mais alto. Em particular, os corretores de dados (“data brokers“:, em inglês) que buscam conseguir elementos como o que a pessoa compra, o que pesquisa online, as suas contas em redes sociais, as doenças que possui, os seus rendimentos, as suas dívidas ou o carro que utiliza. Ou seja, todos os tipos de informações.
Depois de conseguir esses dados, os corretores os comercializa a quem queira comprar. Podem ser seguradoras, bancos, possíveis empregadores, ou, em algumas situações, até mesmo governos, como o dos Estados Unidos.
Esses “abutres de dados“ também são empresas de marketing. Ninguém quer ver anúncios de coisas nas quais não tem interesse, por isso buscam mostrar anúncios personalizados.
Parece inocente, mas essa prática é muito mais perversa do que isso. Imagine que você entra em qualquer página da internet que tenha anúncios e, enquanto a página está carregando, são fornecidas em tempo real informações com seus dados para centenas de empresas que podem querer te mostrar um anúncio sem que você tenha consentido. Essas suas informações que são vendidas podem incluir aspectos muito sensíveis como o poder aquisitivo, a localização, a orientação sexual ou política e suas dívidas.
Todo esse pacote que chega a centenas de empresas com as suas informações fica guardado e cada um dos donos dessas informações pode vendê-las a outras empresas. E se houver uma violação ou invasão virtual, esses dados podem terminar na “dark web“ (área da internet de pouco controle) para serem vendidos a qualquer pessoa.
Eu considero o Facebook como um “abutre de dados“ porque é uma empresa que, basicamente, ganha dinheiro a partir da exploração das informações pessoais dos usuários.
Quanto isso afeta os usuários da internet?
Véliz – Nos afeta de forma invisível e isso é parte do problema. Não é algo tangível, mas pode ter efeitos catastróficos.
Por exemplo, é possível que amanhã peçamos um empréstimo e que o banco não aceite por algum detalhe que está nesses registros que estão à venda. E é possível que esses dados estejam incorretos ou desatualizados. E nunca vamos saber, porque nunca é explicado a você com base em quais informações essa decisão foi tomada. E não saberemos o que pode ser feito para revertê-la.
É bem possível que te impeçam de pegar um empréstimo, conseguir um emprego, comprar um apartamento… e você nunca vai descobrir o porquê.
Outro dos efeitos mais perniciosos da personalização de conteúdos e anúncios é a polarização. As pessoas gostam de ver aquilo que confirma suas piores suspeitas e, muitas vezes, é uma informação incorreta. Em vez de haver uma esfera pública na qual todos podem debater, cada um vê uma realidade a partir de seu perfil psicológico.
Na campanha de Trump, por exemplo, em vez de haver cinco ou seis anúncios para que todas as pessoas vissem, havia seis milhões de anúncios diferentes para os distintos perfis identificados. Isso significa que não existe um diálogo saudável entre perspectivas diferentes.
O que os países podem fazer para proteger os dados de seus cidadãos?
Véliz – Primeiro você tem que encerrar a economia de dados. As informações pessoais não deveriam ser algo que pode ser vendido ou comprado. Mesmo as sociedades mais capitalistas estão de acordo que há coisas que deveriam estar fora do mercado, como os votos ou as próprias pessoas, por exemplo.
Precisamos elevar muito os padrões de segurança cibernética e isso pode passar através de uma regulamentação. No momento, a internet é construída de forma muito insegura, em partes para promover a coleta de dados e também porque não há incentivos para melhorá-la.
Também falta um esforço diplomático. Precisamos de uma aliança comum que possa fazer frente a países como a China ou a Rússia, que têm muito pouco respeito à privacidade.
Será possível recuperar a internet ou é uma batalha perdida?
Véliz – Eu sou bastante otimista. Anos atrás, quando comecei a trabalhar com privacidade, todo o mundo pensava que era um tema morto, mas hoje é mais relevante do que nunca.
Anos atrás ninguém pensava que o GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, em português) seria possível e, embora seja seja muito imperfeito, é um marco histórico.
No passado, prejudicamos muitas coisas importantes, como a camada de ozônio. Nos demos conta de que estávamos a destruindo e agora, com regulamentação e esforço, ela está se recuperando. Outros exemplos que antes eram inimagináveis são o sufrágio universal, os direitos trabalhistas, a jornada de oito horas e as férias.
Neste momento, a internet é como o velho oeste e estamos passando por um processo civilizatório no qual temos que torná-la mais habitável.