segunda-feira, 23 dezembro, 2024 04:40

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Desmatamento no Cerrado gera conflito entre tatus e criadores de abelhas

Viver Magazine Maio 2022 Meio Ambiente

O tatu-canastra é a maior espécie de tatu do mundo: pesa 50 quilos e mede 1,6 metro entre o focinho e a ponta do rabo. Ele também tem uma das maiores unhas da natureza: 14 centímetros no terceiro dedo, uma afiada garra que ele usa para cavar tocas. Porém, a vida não está nada fácil para o tatu-canastra. O constante e crescente desmatamento do Cerrado, um de seus principais habitats, está reduzindo sua oferta de comida, além de jogá-lo em um conflito inesperado com criadores de abelhas.

Com pouca opção de cupins e formigas para comer, o Priodontes maximus (nome científico do bicho) tem atacado e destruído colmeias no Mato Grosso do Sul, em busca de larvas de abelhas para se alimentar. O “vandalismo” do tatu está causando prejuízos de milhares de reais para os produtores de mel no Estado – há relatos de apicultores que, em represália, mataram o raro animal, um crime ambiental. No entanto, um grupo de criadores sul-mato-grossense está tentando resolver o conflito em busca de paz e conservação. Nos últimos meses, dezenas deles se reuniram com biólogos e pesquisadores para desenvolver um guia de convivência com o tatu-canastra. Quem seguir as recomendações ganha um certificado internacional de proteção da espécie, o que pode gerar benefícios financeiros na hora de vender o mel.

Cerca de 700 apicultores atuam no Mato Grosso do Sul, responsáveis por 21 mil colmeias. Muitos recorrem a áreas silvestres e de plantação de eucaliptos para instalar as abelhas, locais próximos a tocas do tatu. As colmeias costumam ficar longe da presença de humanos para evitar ataques de abelhas – por isso, os apicultores só ficam sabendo da ação do canastra horas e até dias depois do ocorrido.

Em locais onde a vegetação nativa permanece intacta, o animal tem recursos à vontade para se alimentar. Porém, em pontos cercados por estradas, pastagens e lavouras, o alimento fica escasso e os tatus atacam as colmeias para sobreviver, segundo o biólogo Arnaud Desbiez, pesquisador e coordenador do Programa de Conservação do Tatu-canastra, realizado pelo Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS) e pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).

“Hoje, o habitat do tatu é extremamente fragmentado. Por isso, muitas vezes ele fica isolado em um desses fragmentos, sem muitas opções de alimentos. Ele acaba procurando as colmeias para comer as larvas”, explica Desbiez.

De hábitos noturnos, o canastra aprende rápido como destruir caixas de colmeias durante a noite. Vídeos gravados pela equipe de pesquisa coordenada por Desbiez mostram sua persistência: ele fica em pé, se pendura, puxa e empurra as caixas até conseguir acesso às larvas, derrubando o mel e soltando as abelhas.

Esses “ataques” fomentaram uma imagem negativa do canastra na região, o “destruidor de colmeias”, e um conflito com os produtores de mel. “Ouvimos relatos de alguns apicultores que mataram tatus, embora grande parte dos criadores esteja interessada em resolver o problema de outra forma, porque entendem que a conservação da natureza é muito importante para a criação de abelhas”, conta Desbiez. 

Canastras e colmeias

Há quatro anos, o apicultor Adriano Adames, de 53 anos, sofreu no bolso com um dos ataques do tatu-canastra. “Eu tinha um apiário com 70 colmeias. Um dia cheguei e todas estavam destruídas”, conta ele, que há 30 anos produz e comercializa mel na capital Campo Grande. A montagem de uma única colmeia custa por volta de R$ 700, fora os custos de mão de obra e manutenção. Adames conta que o dono da fazenda onde ele mantinha o apiário sugeriu uma solução drástica. “Ele me perguntou: ‘Adriano, por que você não mata esse tatu?’ Eu estava muito triste pelas colmeias, mas respondi que não iria fazer aquilo. Já ouvi que alguns apicultores mataram o animal, mas eu sou contra, porque ele não é o culpado”, diz.

O produtor foi o primeiro de 33 apicultores do Mato Grosso do Sul a receber o selo “Produtor amigo do tatu-canastra”, que assegura o compromisso dos criadores com a biodiversidade e a proteção desses animais. O certificado é reconhecido pela Wildlife Friendly, uma organização internacional de conservação da natureza.

O selo faz parte do projeto “Canastras e Colmeias”, financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, que juntou biólogos e produtores para criar estratégias que evitem os ataques às criações de abelhas, mas que também ajudem a conservar o tatu.

Uma das principais orientações do manual é a melhorar a estrutura das caixas de colmeia, principalmente a altura em relação ao solo – se elas ficarem a menos de 1,3 metro do chão, o tatu consegue alcançá-las ficando de pé. Outra dica é colocar cavaletes de metal ou de madeira mais resistente à força do canastra.  Em alguns casos, o guia orienta a instalação de um alambrado ou cerca elétrica no entorno da colmeia, medida adotada pelo apicultor Adriano Adames. “A cerca dá um pequeno pulso elétrico que afasta o tatu, mas não o machuca. Ele leva um susto e vai embora”, explica ele, que também compra e revende mel de outros produtores do Estado.

Adames acredita que o guia de convivência e o selo de apoio à conservação podem ajudar a melhorar inclusive o valor do mel produzido no Mato Grosso do Sul – ele estima que 200 apicultores vão aderir ao certificado até 2023.

“Nossa ideia é que o mel com o selo seja melhor remunerado no mercado, e com vendas pela internet. O produtor precisa se conscientizar da vantagem de conservar a natureza, pois as colmeias também necessitam de um ambiente saudável. Ele também vai perceber que a conservação pode ser benéfica financeiramente”, diz.

Ameaça ao Cerrado

O tatu-canastra é uma espécie rara, em risco de extinção. Ela ocupa vários pontos da América do Sul, da Venezuela à Argentina. No Brasil, está presente nos principais biomas: Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal e Cerrado.

Neste último, onde o tatu tem destruído as colmeias, a situação é dramática. Segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, 43,7% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à agropecuária – só em 2020, o bioma perdeu 7,3 mil quilômetros quadrados, alta de 12,3% em relação ao ano anterior. E a perspectiva de futuro não é animadora.

“Historicamente, o Cerrado foi tratado como um coadjuvante da biodiversidade brasileira. Mas ele é o segundo maior bioma da América do Sul. É a savana mais rica do mundo”, explica Reuber Brandão, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor de manejo de fauna e de áreas silvestres na Universidade de Brasília (UnB).

“Quando começamos a ter uma consciência de conservação do Cerrado, nos anos 1970, boa parte dele já havia sido destruída. Não houve preocupação em criar grandes áreas de preservação”, diz Brandão.

Segundo o biólogo, a soja é a commodity que concentra a produção agrícola em áreas desmatadas do Cerrado. E o Mato Grosso do Sul se destaca como um dos maiores produtores de soja do país. Segundo o governo do Estado, a safra 2020/21 chegou a 13,305 milhões de toneladas – alta de 17,8% em relação à anterior.

A maior parte da soja produzida no Brasil é exportada. Segundo a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), o país exportou 86,628 milhões de toneladas de soja em grão em 2021, acréscimo de 5,2% em relação ao ano anterior. Em farelo de soja, as exportações brasileiras somaram 16,817 milhões de toneladas em 2021, alta de 0,37%.

Para além do drama do tatu-canastra, a destruição do Cerrado causa uma série de impactos ambientais no país, como a redução da oferta de água. Ocupando o Planalto Central e se estendendo por 25% do território nacional, o bioma é o ponto de origem de oito das doze bacias hidrográficas brasileiras. Lá nascem muitos rios que rumam para outras regiões, como o São Francisco, o Tocantins, o Xingu e o Araguaia.


Raridade

É difícil encontrar um tatu-canastra andando por aí. Além da baixa densidade, ele não costuma dar as caras durante o dia, quando permanece dentro da toca – cava um buraco a cada dois dias, em média. Só sai à noite para comer.

Segundo o biólogo Arnaud Desbiez, a espécie só começou a ser estudada de maneira ampla e de longo prazo a partir de 2010, quando zoológicos norte-americanos e europeus passaram a financiar pesquisadores no Brasil.

“Uma das principais descobertas é que a toca do canastra é também utilizada como abrigo por outras 70 espécies, como queixadas, furões e serpentes. Alguns entram na toca para ter filhotes. O tatu-canastra é o que chamamos de ‘engenheiro de ecossistema’, pois constrói a casa de outras espécies. Quando ele desaparece, outros animais desaparecem também”, explica Desbiez.

Não se sabe ao certo qual é o tamanho da população de tatus-canastra no Brasil. Levantar esses dados é tarefa difícil, por causa da grande extensão do território e da dificuldade de achar o animal na natureza.

Em um estudo de 2015, o biólogo e outros pesquisadores encontraram 69 fragmentos de tatu-canastra em uma área de 25 quilômetros quadrados no Cerrado, índice considerado muito baixo.

A reprodução da espécie também é lenta, o que torna a renovação mais difícil. A maturidade sexual do tatu começa apenas entre sete e nove anos de idade – e só nasce um filhote por gestação, a cada três anos.

“Ele tem uma taxa de nascimento muito, muito, muito baixa. A morte de cada indivíduo significa uma perda muito grande para a espécie. É por isso que o tatu-canastra pode ser extinto de maneira muito rápida”, diz Desbiez.