domingo, 22 dezembro, 2024 23:55

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Era Trump, o balanço político de quatro anos frenéticos

Por BBC Brasil

A presidência do republicano deu uma guinada na tradição multilateral dos Estados Unidos e consolidou a desigualdade na primeira economia global

IMIGRAÇÃO. O medo do outro nos Estados Unidos

Assim que Donald Trump assumiu a presidência, em janeiro de 2017, foi estabelecida uma máxima para a imigração: dissuadir a entrada de qualquer pessoa alheia ao país. O presidente nunca escondeu sua rejeição à integração dos imigrantes e até transformou o assunto em um slogan de campanha: “Construam o muro!”. E o muro é mais do que uma obra de engenharia na fronteira com o México: tornou-se a detenção e deportação de milhares de pessoas; o aumento das restrições nos procedimentos migratórios; e o fortalecimento dos órgãos que fiscalizam o cumprimento de uma série de normas que a cada dia se tornam mais exigentes.

Logo que chegou à Casa Branca, Trump ordenou a contratação de 15.000 agentes para o Departamento de Segurança Interna, iniciativa seguida pelo fortalecimento da polícia de imigração (ICE, na sigla em inglês) e da patrulha fronteiriça. As batidas para localizar e deportar imigrantes sem documentação viraram cenas cada vez mais comuns em várias cidades. A força de rastreamento de imigrantes tornou-se implacável: a ICE já não procurava apenas imigrantes irregulares com antecedentes, ela ampliou suas funções para detectar qualquer pessoa que não tivesse permissão para permanecer no país.

Nos consulados e embaixadas dos EUA em todo o mundo, os critérios para a concessão de visto ficaram mais duros. Os primeiros a experimentá-los foram os trabalhadores especializados, aqueles com visto H1-B, que desde 2017 são submetidos a uma verificação rigorosa. Com a pandemia de covid-19, a emissão de documentos migratórios voltou a ser o centro da polêmica. Trump assinou uma ordem executiva para impedir a emissão de alguns vistos de trabalho —sob o argumento de que a economia local deve se fortalecer com o trabalho dos americanos— e também restringiu a entrada de estudantes universitários. O vírus também serviu de justificativa para fechar a fronteira com o México por vários meses.

Trump atiçou o debate migratório já em sua primeira campanha à presidência, ao responsabilizar diretamente o México pela imigração irregular. Sua principal proposta passou a ser a construção de um muro ao longo dos mais de 3.000 quilômetros de fronteira. Por meio do Congresso, o presidente tentou obter fundos para o projeto. Segundo estimativas de seu Governo, até agora foram construídos 400 quilômetros do muro. Ao mesmo tempo, Trump pressionou o México e alguns países da América Central para que evitassem o fluxo de migrantes para o norte. México e Guatemala, por exemplo, tornaram-se refúgios para aqueles que solicitaram asilo aos EUA e aguardam uma audiência com um juiz para resolver sua situação migratória.

Em 2018, imagens de caravanas de migrantes que viajavam da América Central rumo aos EUA foram seguidas pela exibição de centros de detenção onde as famílias eram separadas e os menores, levados para instalações nas quais eram trancados em jaulas. Um estudo do Immigration Hub aponta que a separação das famílias sob o Governo Trump é uma das maiores críticas entre os eleitores. “Sua visão anti-imigrante é uma das razões pelas quais alguns americanos votam contra ele”, assinala o documento.

Quem bateu às portas da Suprema Corte para lutar por sua permanência nos Estados Unidos foram os chamados dreamers (“sonhadores”), imigrantes irregulares que chegaram ao país quando crianças e o adotaram como seu lar. Na corte, eles defenderam a vigência do programa Ação Diferida para os Chegados na Infância (DACA, na sigla em inglês), implementado durante o Governo de Barack Obama, que lhes concede um caminho para permanecer legalmente no país. Trump tentou acabar com o programa para iniciar a deportação de alguns dos 700.000 jovens beneficiados pela iniciativa. Não conseguiu, mas reduziu o prazo de vigência das permissões de permanência, que agora precisam ser renovadas a cada ano, em vez de a cada dois anos.

ECONOMIA. O mérito e a culpa

Quando Trump pede voto, faz isso pela economia. Algo curioso quando concorre à reeleição com um país em recessão, devastado pela pandemia. Mas ele criou a melhor economia da história, diz, e voltará a fazer isso quando passar a crise sanitária. Desconsiderando a hipérbole, sua marca registrada, ele tem certa razão na primeira parte da mensagem: Trump herdou uma economia forte, em expansão desde a saída da crise em 2009, e a manteve ainda mais forte. O crescimento se acelerou na primeira metade de seu mandato, e a partir de 2019 se desacelerou (baixou de 2,9% em 2018 para 2,3% em 2019), deixando entrever o início do fim de um período extraordinariamente longo de crescimento ininterrupto, que terminou abruptamente devido à paralisação da atividade em consequência do coronavírus. Esse longo período de crescimento criou uma situação de quase pleno emprego (um desemprego de 3,5% desde o final de 2019), o que levou ao aumento dos salários, incluindo o dos trabalhadores de menor renda. A tendência já havia começado com Obama, mas é verdade que, de 2017 a 2018, os salários cresceram 2,9%, a maior alta (não ajustada pela inflação) em 10 anos.

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O crescimento dessa primeira etapa foi meio artificial, segundo seus críticos, por ter sido impulsionado por um corte de impostos aprovado em dezembro de 2017, a maior em três décadas. Foi um corte regressivo, que beneficiou principalmente as empresas e as pessoas de renda mais alta, e que não teve o apoio dos democratas por seus efeitos sobre os cofres públicos e seu potencial de aprofundar as desigualdades que afetam a economia mais poderosa do planeta. Pouco depois viria outro estímulo ao crescimento, com uma legislação de fevereiro de 2018 que elevou os limites dos gastos públicos. O investimento público disparou (no setor de defesa, mas não só), mesmo antes da pandemia, mais rápido do que durante a última Administração democrata. A política monetária também contribuiu para prolongar o ciclo de crescimento: Trump pôs no comando do Federal Reserve (banco central dos EUA) um Jerome Powell que, pressionado até com insultos pelo presidente que o nomeou, priorizou o crescimento mantendo taxas de juros baixíssimas.

Outro dos pilares da economia de Trump foi a imposição de tarifas sobre as importações e a renegociação de acordos comerciais, com o objetivo de proteger a indústria doméstica da concorrência de países com salários mais baixos, como China e México. O resultado mais claro foi uma custosa guerra comercial com a China, ainda em andamento, que, apesar dos esforços dos EUA, fez o déficit comercial disparar.

Trump começou seu mandato com a sorte a favor (herdou uma economia muito melhor que seus dois predecessores) e termina com a sorte contra (na forma de uma pandemia devastadora). Seu legado econômico pode ser dividido, portanto, em duas partes. A primeira, até março deste ano, com excelentes dados de emprego e renda; a segunda, desde que a pandemia atingiu o país, com índices de desemprego (14,7% em abril) não vistos desde a Grande Depressão. A taxa de desemprego melhorou levemente nos últimos meses (7,9% em setembro), mas sua tendência ainda está cercada de incógnitas, com uma pandemia que não para e uma pressa eleitoreira de Trump para reabrir a economia ? pressa que não ajuda em nada a controlar a crise sanitária.

Embora boa parte da atividade esteja fora do controle do presidente, não seria justo reivindicar todo o mérito pelas coisas boas sem admitir responsabilidade nenhuma pelas más. Acontece que o empenho de Trump em elevar o crescimento no curto prazo, que permitiu a bonança da primeira parte da trumpeconomia, acabou colocando o país em uma situação pior para responder a desafios como o que virou de ponta cabeça o final de seu mandato.

MEIO AMBIENTE. Desregulamentação obsessiva

Em um comício realizado em 8 de setembro na Flórida, Trump se referiu a si mesmo como “o presidente número um em meio ambiente desde Teddy Roosevelt”. Disse que queria se vender como o mais ambientalista desde George Washington, mas seus assessores o contiveram. Afirmações como essas recheiam os discursos de Trump, que diz ter “o ar mais limpo” ao mesmo tempo em que protege o trabalho. O legado destes quase quatro anos, no entanto, é uma desregulamentação obsessiva de todos os avanços de Administrações anteriores.

O maior ataque do Governo Trump às políticas contra a mudança climática talvez seja mais simbólico do que prático. Em 1º de junho de 2017, Trump anunciou solenemente do Jardim das Rosas da Casa Branca que os Estados Unidos estavam se retirando do Acordo do Clima de Paris. Alegou razões econômicas e supostas obrigações que enfraqueciam os EUA diante de outros países. “É hora de colocar Youngstown, Detroit e Pittsburgh à frente de Paris”, disse. O abandono do acordo assinado por 195 países foi um divisor de águas na luta global contra a mudança climática e um sinal de que o mundo não podia contar com os EUA. Enquanto as políticas relativas à mudança climática avançam em alguns Estados e municípios, os EUA já não estão formalmente comprometidos, como país, com a redução de emissões poluentes, apesar de serem o segundo maior emissor depois da China.

Internamente, os quatro anos de Trump têm sido um ataque sem trégua a uma regulamentação ambiental que vem da época de Richard Nixon. O primeiro escolhido por Trump para comandar a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA, na sigla em inglês) foi Scott Pruitt, procurador-general de Oklahoma cujo mandato se caracterizou por ter colocado seu cargo a serviço das indústrias poluentes. Apenas quatro dias depois de tomar posse, assinou uma ordem executiva para acelerar a construção de dois grandes oleodutos (Keystone XL e Dakota Access), aos quais se opõem grupos ambientalistas e comunidades nativas. Nos primeiros quatro meses no cargo, Trump assinou 14 ordens executivas para desmantelar regulamentações com as quais os EUA pretendiam reduzir entre 26% e 28% suas emissões até 2025, em relação a 2005.

Nos anos seguintes, a EPA foi transformada em um aríete contra as políticas ambientais, relaxando sistematicamente as regulamentações e beneficiando, com isso, as indústrias poluentes. O caso mais significativo, por suas consequências imediatas e pela batalha fenomenal que provocou, foi a anulação dos limites de emissão de poluentes dos veículos que Obama pactuou com a Califórnia. Há cinco décadas, o Estado mais populoso dos EUA tem permissão para definir seus próprios limites de poluição para os veículos. Outros 15 Estados seguem a regulamentação da Califórnia. Juntos, representam um terço do mercado automobilístico do país. Trump elevou esses limites, como pedia a indústria do setor. A Califórnia, no entanto, anunciou que manteria seus limites, criando de repente a possibilidade de um duplo mercado nos EUA. Trump rescindiu então a permissão da Califórnia para definir seus próprios limites, e o caso está agora na Justiça.

POLÍTICA EXTERNA. Diplomacia por Twitter

De todas as promessas que fez na campanha eleitoral de 2016, Donald Trump levou a de “America First” (os EUA em primeiro lugar) ao limite. O lema foi transformado no principal legado de sua política externa: um país alheio ao mundo, isolacionista e desdenhoso em relação aos convênios e organizações que compõem a comunidade internacional, do Acordo do Clima de Paris à Unesco e à Organização Mundial da Saúde. Quatro anos depois de chegar à Casa Branca, parecem poucas as conquistas reais de sua política externa, transformada em diplomacia por Twitter e na base do impulso, com uma pedra no sapato: a guerra comercial com a China, cada vez mais política, com a imposição de sanções a Pequim pela repressão contra os uigures em Xinjiang e contra o movimento pró-democracia em Hong Kong.

Durante seu mandato, menosprezou a União Europeia, desqualificou a OTAN, caracterizou a ONU como “um clube de pessoas que se reúnem para se divertir” e, em um golpe de efeito com mais resultado midiático do que conteúdo, encenou um princípio de entendimento com o ditador norte-coreano Kim Jong-un. Enquanto isso, mostrava-se ambíguo, ou ambivalente, em relação ao presidente russo, Vladimir Putin, ou olhava para o outro lado diante dos desmandos —como o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi— do círculo real saudita.

Não satisfeito com isso, esteve a ponto de desencadear um conflito de consequências incalculáveis com o Irã, seu inimigo favorito junto com a China, ao ordenar a morte do general Qassem Soleimani, chefe da Guarda Revolucionária, em represália pelos ataques de milícias pró-iranianas às tropas americanas no Iraque. O capítulo relativo à presença dos militares americanos em guerras que, nas palavras de Trump, não são necessárias para os EUA é uma das peças que ele jogou em busca do apoio da opinião pública, ainda com resultados duvidosos, por exemplo, no Afeganistão.

Nestes quatro anos, Trump desfez o caminho percorrido por seu antecessor, Barack Obama. Retrocedeu no degelo das relações com Cuba —voltando à política de linha dura—, mas principalmente no acordo nuclear com o Irã, do qual Trump retirou os EUA em 2018. A sombra do Irã se projeta a cada passo que a diplomacia trumpista, por meio de seu genro e conselheiro Jared Kushner, dá no Oriente Médio, e principalmente nos recentes acordos entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrein, patrocinados por Trump, que pretende tirar proveito eleitoral deles. Chamado com grandiloquência de “acordo do século”, que supostamente deveria resolver décadas de conflito israelense-palestino e só favorece um lado, culminou o alinhamento não dissimulado de Washington com Israel, com marcos simbólicos como a transferência da embaixada para Jerusalém, declarada capital por Trump contra todas as resoluções internacionais. Há algumas conquistas discretas em seu currículo, como o recente acordo econômico entre Sérvia e Kosovo, que Trump comemorou em um tuíte no qual situou o segundo país no Oriente Médio. Mas o papel decididamente proativo de Washington nos Bálcãs não é novo, nem altruísta: obedece à necessidade de se contrapor à entrada triunfal, pela região, da Nova Rota da Seda chinesa na Europa.

Quanto à América Latina, sua política foi tão errática quanto no resto do mundo. Ainda em sua primeira campanha eleitoral, humilhou publicamente o então presidente mexicano Enrique Peña Nieto. Apoiou oficialmente Juan Guaidó, reconhecido por 60 países como presidente interino da Venezuela, mas de modo privado não poupou dúvidas sobre sua liderança. As FARC colombianas e o regime de Nicolás Maduro na Venezuela foram seus alvos favoritos na região, mas a imposição de sucessivas sanções contra a cúpula chavista foi contrabalançada pela falta de uma estratégia coerente.