sábado, 20 abril, 2024 05:43

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Pais – Deixem Seus Filhos Brincar!

Propiciar e estimular brincadeiras na infância é o maior legado que podemos deixar para as futuras gerações. Criança que não brinca terá dificuldade para decodificar o mundo.

Brincar é coisa séria. É sério por que é na brincadeira que a criança desenvolve habilidades motoras e cognitivas, exercita a criatividade e a imaginação, vivencia sentimentos como vitória e frustração, raiva e alegria, posse e perda. É quando ela se conecta a outros seres – reais ou imaginários – e com quem divide emoções, narrativas e aventuras. É quando a criança se entrega ao prazer genuíno. A brincadeira não é só estruturante do sujeito, mas é também o momento em que a criança se entrega ao espontâneo para fazer o seu trabalho: entender o mundo. O conhecimento sobre a importância do brincar para o desenvolvimento humano é de quase um século e a cultura lúdica sempre acompanhou a humanidade. Infelizmente, há uma alienação dessa informação. As famílias, muito preocupadas em educar para o futuro e o sucesso profissional, enchem o dia das crianças com atividades extracurriculares. Algumas preferem meninos e meninas quietos e seguros em frente às telas e há ainda aquelas que não conseguem entender como é possível gavetas cheias de brinquedos e crianças entediadas.
Brincar prescinde tempo. “É curioso observar pais, mães, escolas e creches estipulando a ‘hora do brincar’ e determinando o início e o fim. ‘Acaba’ a brincadeira e os adultos querem arrumar “aquela bagunça”. Não é bagunça. Não se cria sem tirar as coisas do lugar. Muitas vezes a criança não brinca com determinado brinquedo porque ele está lá, guardado no armário ‘bem arrumadinho’ e que impossibilita a brincadeira. O espaço da brincadeira tem que funcionar para estimular o brincar. Se ele é restritivo, ele impede a criação”, afirma a doutora em psicologia do desenvolvimento humano e professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas), Paula de Souza Birchal. A brincadeira é a linguagem da criança. E o brincar é a linguagem do espontâneo. O que de melhor podemos fazer para meninos e meninas é propiciar a eles tempo, espaço e liberdade para se entregarem ao prazer genuíno da brincadeira. E confiar. As crianças são as maiores especialistas do brincar.
Em muitos casos, brincar ainda é visto como perda de tempo. A diretora pedagógica de um centro de educação infantil em Contagem, Renata Azeredo Silva Amaral relata a dificuldade que é, na prática, as famílias compreenderem a importância do brincar para as crianças. “Pais e mães querem caderno repleto de atividades pedagógicas. É um desafio resgatar, com as famílias, a importância do lúdico na infância”, diz.
Para tentar driblar essa barreira, a pedagoga decidiu criar um projeto, o ‘Recreaprendo’, com o objetivo claro de introduzir o tema no ambiente familiar. Assim, toda sexta-feira, as crianças levam para casa uma tarefa que consiste em uma brincadeira para ser feita junto com o pai e a mãe. “As famílias devem registrar o momento com fotos, desenho e os cuidadores são convidados a escrever sobre as reações, sentimentos e emoções que perceberam na criança”, explica. O caminho é tortuoso, mas Renata diz que a escola já tem algumas boas histórias para se apegar.
A professora da PUC-Minas, Paula de Souza Birchal ressalta que a forma de a criança se organizar enquanto sujeito é brincando. “Os adultos não reconhecem isso porque estão sempre em busca de um efeito, de um resultado. Só que o efeito é em longo prazo, é o desenvolvimento do sujeito. O brincar ensina tudo”, reforça.
Segundo a especialista, a realidade da educação infantil é que uma criança tem que ler com 6 anos e que, em geral, na escola, há um excesso de conteúdo que não propicia tempo livre para o brincar. “São tantas as atividades pedagógicas como se o lúdico não fosse fundante do sujeito. Já dizia Paulo Freire, primeiro a gente lê o mundo para depois ler as letras. E como a criança vai ler o mundo? Brincando. Menino e menina que não brinca terá dificuldade para decodificar o mundo”, salienta.

Livre brincar – Essa ansiedade por resultado não favorece o livre brincar e pode, inclusive, esconder um lado perverso da relação do adulto com a infância. Brincar é em si uma atividade desinteressada (no sentido de não ter um objetivo específico) que a ajuda a preparar para a vida. Os brinquedos pedagógicos, por exemplo, deveriam ficar restritos ao ambiente escolar. Psicóloga, especialista em psicanálise, mestre em psicologia e coordenadora do curso de psicologia do Centro Universitário UNA, Camila Fardin explica que brinquedo pedagógico é todo aquele que é feito de madeira ou plástico e tem o objetivo de ensinar alguma coisa às crianças. “O lugar do brinquedo pedagógico é na escola. As famílias devem permitir que as crianças brinquem livremente sem nenhuma função além do prazer”, defende. “Brincar ensina tudo” – Paula Birchal, doutora em psicologia do desenvolvimento humano e professora da Faculdade de Psicologia da PUC-Minas)
Paula de Souza Birchal afirma que é importante compreender que a função do brinquedo é a função que a criança dá a ele. “Se um professor ou a família quer usar um jogo para ensinar matemática para a criança, por exemplo, esse objeto passa a ser um instrumento metodológico e deixa de ser brinquedo porque a criança não vai mais brincar do jeito dela. Se tem direcionamento, se tem intenção, não é brincadeira, é processo de aprendizagem. É uma forma mais lúdica de ensinar? Sim. Mas não é o ato de brincar”, salienta.
A professora da PUC Minas explica que a intencionalidade de um brinquedo restringe a construção fantástica da criança. Isso pode explicar, por exemplo, aquele carrinho de controle remoto caro guardado na gaveta, que tem uma função específica e que não dá possibilidades de criação para a criança. Por outro lado o potencial de uma caixa de papelão é imenso: pode ser carro, pode ser trem, pode ser nave, pode ser foguete, pode ser capacete, pode ser uma cesta de basquete…

Paula de Souza Birchal reforça que, conceitualmente, brinquedo é qualquer objeto que é dado a ele uma função lúdica. “O fim é o brincar. Se formos analisar historicamente, na Antiguidade, não existia o brinquedo como objeto da criança. Meninos e meninas utilizavam aquilo que sobrava da casa e que se transformava em brinquedos nas mãos das crianças. Com a valorização da infância a partir do século 18 que o brinquedo vai surgir como objeto da criança. No século 20, com a industrialização, essa relação fica mais evidente, um sinal da infância ocupando um lugar social”, resume.
Só que indústria, publicidade e mídia levaram essa relação às últimas consequências e hoje já se discute o consumismo infantil como um problema real na vida de muitos meninos e meninas. Mais brinquedos não significa mais brincadeiras e pode, em alguns casos, levar ao caminho contrário. “Uma criança não precisa de muitos brinquedos, o que ela precisa mesmo é de tempo para brincar”, garante Camila Fardin. Segundo ela, a criatividade é fundamental para o desenvolvimento da inteligência e as famílias precisam é oferecer ferramentas que possibilitem às crianças criarem.
“Quanto menos estruturados forem os brinquedos mais a criança terá que exercitar sua imaginação e mais o brincar será enriquecedor” – Desirée Ruas, integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo (REBRINC)
Para a jornalista e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo (REBRINC), Desirée Ruas, vivemos o desafio de fazer com que as crianças reaprendam a brincar. “Elas foram acostumadas à pressão dos comerciais e de lançamentos que incentivam o colecionar, o acumular peças. Vemos armários cheios de brinquedos e crianças que não sabem brincar porque faltam espaço, companhia e estímulo. Dessa forma, sobra pouco para a criança imaginar e criar e a brincadeira depende dessa liberdade. Então, quanto menos estruturados forem os brinquedos mais a criança terá que exercitar sua imaginação e mais o brincar será enriquecedor”, acredita.
Psicóloga hospitalar, Christiane Gibram, 39 anos, parou de trabalhar quando sua primeira filha nasceu, Manuela, hoje com seis anos. Ela também é mãe de Bruno, de 4, e nunca perdeu o prazer e o interesse pelo brincar. Quando as crianças vieram, ela aproveitou para se esbaldar no mundo de fantasia da duplinha. Na casa dela, os armários estão repletos de brinquedos, mas o sofá é montanha e ela já perdeu quantas vezes o filho e a filha já escalaram o móvel em contextos de brincadeiras dos mais diversos. “A regra aqui em casa é ‘deixa brincar’”, afirma. Brincar é construir parceria.
E é assim que tem quer ser. Brincar é construir parceria. Para a psicóloga Paula de Souza Birchal pais e mães que brincam com seus filhos e filhas estão dizendo ‘somos parceiros em tudo’. “O valor da vida para a criança é o valor que a família dá. É importante que o adulto também tenha seus momentos lúdicos. Faz parte da vida, construímos isso na infância, mas as o prazer da brincadeira perdura pela vida”, diz. Lembre-se: somos homo ludens e brincar precede a cultura porque até os animais brincam.